sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008


Querida Minh’alma,

Você deve estar se perguntando “por que danado ele está me escrevendo, já que nunca quis manter contato comigo?”. Antes de dizer algumas coisas que eu devia ter dito há muito tempo, vou narrar como cheguei à conclusão que, de fato, eu te conheço menos do que eu imaginava.
Eu sempre escondi de mim e dos outros que não costumava dialogar com você. Lá no fundo (penso que eram gritos que você estava dando), isso me incomodava, mas, inicialmente, achava que esse papo de introspecção não era coisa de nordestino, só se destinava a mulheres (que estão mais interessadas no interior, discutir relacionamento e coisas do tipo) e para homens que precisavam ouvir “seje omi, omi” (totalmente Sic). Pena que não nasci numa família que me ensinasse a desprezar esse preconceito bobo. Depois de certo tempo, por influência da ABU e da minha Igreja, percebi que a coisa é séria, que eu tinha que trocar umas idéias com você. Só não sabia como.
Não sei se você está ligada (o que implicaria no fato de EU não estar totalmente consciente) que eu estou no Instituto de Preparação de Líderes (vulgo IPL), que pretende gerar bons frutos para a missão estudantil (e já tem colhido ótimos jogadores de bilhar). Pois, nesse bendito treinamento, encontrei uma mulher chamada Taís Machado (acreditasse que esse segundo nome é devido ao fato de suas palavras serem tão delicadas quanto essa arma). Esse Machado de Deus está infernizando (no bom sentido, caso ele exista) a vida de todo mundo com um papo de Silêncio Reflexivo. Essa prática não era novidade para mim, pois eu já tinha tentado fazer isso em outros eventos da ABU (CF e TIFS), mas nunca a direção dos outros eventos foi tão incisiva. Acho que a diferença é que agora eles têm um Machado.
Como eu queria que o “Silêncio” proposto por Taís não fosse “Reflexivo”, mas “Flexível”, ou seja, que me desse a possibilidade de fazer o que eu quisesse, desde que em silêncio.
De acordo com a proposta da direção do evento, deveríamos sentar e conversar com nossas almas. É como se fosse um momento para eu chamar você para participar do IPL comigo. Só assim, EU ficarei completo, unirei a transcendência e a imanência. Por enquanto, eu, a parte imanente, estou sozinho aqui, sem você Minh’alma. Estou aguardando a união com a minha parte transcendente.
Não sei como está sendo o Silêncio Reflexivo para as outras pessoas, mas não está funcionando comigo. Eu fico lá sentado, penso no que leio e tal. Oro um tempão. Mas depois penso numa série de coisas que não têm nada a ver. Eu simplesmente não sei o caminho para você. Aqui no IPL, assistimos um filme chamado ABC do amor. Nessa trama, um garoto chamado Gabe não sabia como chegar ao coração de Rosemary, que era a menina por quem ele se apaixonou. Passei o filme todo dizendo que o menino era “mole”, não era nordestino etc. Mas hoje percebo que o meu problema é bem maior. Eu não consigo chegar a você, Minh’alma.
Mas nem tudo está perdido. Nesse mesmo IPL, foram-me apontadas algumas direções. A primeira veio no momento reflexivo do primeiro dia. Henri Nouwen me deu uma dica: “é no silêncio que podemos verdadeiramente reconhecer quem somos.” Ele está certo, só que tem um detalhe. Tenho dificuldade de fazer silêncio.
Vivo no mundo do movimento e da sucessão de imagens. Minha vida é marcada pelo relógio. Tenho tempo para tudo: para estudar, ler a Bíblia, orar, namorar (nesse último caso, eu sempre dou um jeito de ter pré-tempo e pós-tempo, às vezes, pós-pós-tempo), de jogar no computador. Mas tempo para silêncio? O único que eu tenho, Minh’alma, é o de dormir. Mesmo nesse momento, não há tanto silêncio, pois, às vezes, e quero enfatizar, “às vezes” mesmo, eu ronco.
E aí surgiu a segunda dica, e que está ajudado muito, a saber, a de fazer um diário. É lógico que não fiz um diário. “Querido diário [...]”. Já pensou que mico? Percebi que poderia dar certo com relação aos resultados, ou seja, me encontrar com você, mas não gostei dos meios. Então pensei em mandar uma carta para você, pois, assim como escrever num caderninho com cadeado, é uma forma de escrever para mim mesmo.
Pois é, Minh’alma, estou louco para te conhecer melhor. Penso que, se continuar reservando um momento para silenciar e pensar em você, vou começar a entender melhor como Davi era capaz de conversar com a própria alma: “por que estás abatida, ó minha alma? [...] Espera em Deus” (Salmo 42:11). Compreenderei também o que levou Agostinho de Hipona a escrever Solilóquios, que são conversas interiores. Até as aventuras de Alice, personagem de Lewis Carroll, farão mais sentido, pois poderei entender as discussões que ela tinha com ela mesma.
Bem, não te conheço como deveria, mas não me iludo, pois sei que você, assim como eu, não é flor que se cheire. De forma geral, dou um jeito de manter as aparências aqui fora, mas você sempre dá um jeito de mostrar as caras e me constranger diante dos outros. Pecados que eu torcia para ficarem escondidos surgem e me envergonham. Talvez seja por isso que eu nunca tenha tido coragem de te encarar, pois então saberia quem EU realmente sou.
Não pense que eu não gosto de você. Eu gosto muito, mas tenho consciência que você deve ter qualidades que ainda não conheço e uma grande quantidade de lixo que preciso ver, cheirar e pegar (tudo muito desagradável) para jogar fora, mas só assim vamos limpar o ambiente para o Espírito Santo Viver da melhor forma possível.
Creio que Deus já está atuando em nós. O próprio incômodo de viver longe de você já é um reflexo disso. Mas as bênçãos Daquele que nos criou serão ainda maiores se estivermos juntos, se deixar de existir eu e você e só existir EU. Assim como a terra precisa da violência do arado para dar bons frutos, penso que as machadadas de Deus nos abençoarão, embora inicialmente elas gerem uma raivinha!
Não tenho muito para compartilhar desses primeiros contatos, pois as coisas ainda estão confusas, mas creio que seremos um só em breve. Já percebi algumas coisas que precisamos rever, mas isso é assunto para outra carta. Aguarde-me, pois logo eu chego aí.
Ansioso por sua companhia,
eu

PS: Cara, tu não faz idéia de como estou com saudade da Neguinha!

Um comentário:

Cássia Oliveira disse...

Flávio, essa carta é uma carta universal... em algum trecho dela todos nós estamos inseridos! Vc nos representou muito bem! Fiquei fã da sua escrita! Um doce abraço!!!